quarta-feira, 15 de julho de 2009

Ornitorrinco

Dias atrás o Antonio Prata escreveu uma crônica muito boa para o Estadão. Nela, comparava a morte aos ornitorrincos: a gente sabe que existe, mas não pensa muito neles. Gostei muito do texto e, por isso, divido-o com vocês. Com um salve do Arnô!

Ornitorrinco

por Antonio Prata, Seção: Crônica do Metrópole, Crônica do Guia 19:52:23.

Meu senhor, minha senhora, desculpa tocar no assunto, mas você vai morrer. Não se ofenda, vamos todos: eu, a Dona Eulália do 51, a rainha Silvia da Suécia e a voz da chamada a cobrar. Talvez não hoje, nem em dez anos, mas uma hora dessas bateremos as botas e batidas elas ficarão, até virarem terra, depois capim, minhoca, cachorro e daqui milhões de anos, quando o sol explodir, voltaremos à poeira cósmica de que viemos.

Eu sei que você sabe disso - sempre soube -, mas aposto que não estava pensando no assunto quando começou a ler essa crônica. Nós raramente pensamos na morte. Sabemos que ela existe em algum lugar distante, assim como, digamos, os ornitorrincos - e assim como vivemos muito bem, obrigado, sem nunca topar um ornitorrinco, nutrimos lá no fundo a esperança de, quem sabe, jamais darmos de cara com Ela.

Talvez seja melhor assim. Seria impossível viver de olho na ampulheta. O dia-a-dia transformaria-se num filme do Bergman, ficaríamos cambaleando por corredores escuros e resmungando sobre o tempo e o nada, ou quem sabe sairíamos loucos pelas ruas, pelados, saqueando supermercados, bebendo Cynar no gargalo e cantando A Jardineira; imagina só botar as crianças pra dormir ou calcular o imposto de renda no meio da confusão?

Não é por desleixo que ignoramos a morte: empenhamos muita energia nessa direção. Está vendo esses homens embriagando-se no bar? Aquela garota de sobrancelhas franzidas analisando a tabela nutricional do iogurte? O casal brigando dentro do carro? Tudo para não olharmos de frente a grande defenestradora. Tergiversamos o quanto podemos, mas não postergamos: uma hora ela chega, nós vamos.

Não, caro leitor, essa não é uma crônica edificante. Não recomendarei que viva todo dia como se fosse o último, pule de pára-quedas, faça as pazes com seu irmão. Talvez essas ações te façam bem, mas isso nada tem a ver com a morte. Ter uma vida plena só é bom enquanto estamos vivos; defuntos, Don Juan e a dondoca são iguaizinhos.

Veja só os gregos, tão sabidos: todos mortos. Shakespeare, morto! Einstein, morto! A Marilyn Monroe, Noel Rosa e o Cacique Tibiriçá, mortos, mortos, mortos! “Ah, mas eles sobreviveram em nossa memória!”. Grande coisa. Lembranças não comem picanha, não fazem sexo e, mesmo vivendo na cabeça de milhões de pessoas, nunca sentiram o prazer de um cafuné.

Paciência. O negócio é tocar pra frente. Vamos lá, hoje é domingo. Tem jogo? Churrasco? É dia de cortar as unhas dos pés? Melhor não pensar na morte e torcer para que ela também não pense na gente. Quando ela vier, que venha: antes disso, que fique lá pros lados da Austrália, junto aos ornitorrincos.

Desculpa tocar no assunto.

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